Palco de uma cultura milenar, de numerosas e diferenciadas práticas religiosas, centro de aguerridas batalhas, passadas e presentes, local com dezenas de lugares de Património da Humanidade, assim é a CHINA (parte II).
Abandonámos o paraíso (crónica anterior) e voltámos para Guilin à espera do avião da noite que nos levaria para Chengdu, a terra dos ursos Panda. Levantamo-nos cedo, pois também os ursos reservam a sua hora mais dinâmica (e única) para as manhãs. O Centro de Pesquisa e Criação do Urso Panda Gigante tem alcançado um grande sucesso na reprodução em cativeiro destes simpáticos e meigos ursos. Após a delapidação sistemática do seu habitat natural (corte da floresta de bambu), os ursos encontram aqui um santuário que aposta na sua preservação e propagação. Ficamos completamente rendidos a estes “peluches” brancos e pretos, lentos de movimentos e bonacheirões. Após serem alimentados, regressam à sua modorra preguiçosa, nas mais caricatas posições. Em Chengdu experimentamos o famoso Hotpot, em que num molho “malagueta” vamos cozinhando lentamente a nossa comida. Olhamos para os nossos vizinhos comensais para descobrir a arte de comer este prato. São tolerantes connosco os empregados que se divertem perante os turistas aventureiros que choram lágrimas de picante!
CHEIAS NA CHINA
Chengdu oferece-nos ainda simpáticos passeios pelos seus frescos jardins e magníficas casas de chá que nos convidam a descansar e… repensar nos nossos planos de viagem! As notícias esporádicas (raramente tínhamos acesso a um canal inglês) das cheias por todo o território chinês, faz-nos reconsiderar os planos traçados inicialmente. A sedução de uma viagem de barco pelo rio Yangzi começa a tomar contornos alarmantes. Um passeio de três dias por uma paisagem deslumbrante iria culminar no maior projecto hidroeléctrico do mundo, a famosa barragem das três gargantas. O encontro das águas esbarra aqui numa parede de 183m de comprimento e 185m de altura, criando um lago artificial de mais de 630Km que inundou dezenas de lugares históricos, comunidades e cidades inteiras. Milhares de pessoas tiveram de ser realojadas, num processo tão gigantesco como a própria barragem. É esta uma das belezas das viagens independentes: a alteração de percursos. Ficamo-nos por Dafo o grande Buda, em Leshan, escavado na rocha nas margens do rio. Debaixo de uma chuva torrencial que nos ensopa até aos ossos, um barco conduz-nos à maior escultura budista do mundo (de proporções semelhantes às que foram destruídas pelos talibans no Afeganistão). Gigantesco, do alto dos seus 71m, contempla impassível, as águas furiosas, cor de lama que lhe lambem os pés. Magnífico!
O EXÉRCITO DE TERRACOTA
Está decidido! Vamos manter-nos longe dos grandes rios… ou quase! Assim, partimos mais cedo para Xi’An, trocando o longo e massacrante percurso de 16h de comboio por uma rápida viagem de avião. Xi’An é uma cidade murada (nem por isso mais pequena), algo interessante com alguns edifícios de herança arquitectónica, mas cuja principal e mais atraente característica é a sua proximidade ao local dos Guerreiros de Terracota. Descoberto acidentalmente em 1974, por uns camponeses que procuravam um poço, é agora Património da Humanidade. Com um número estimado de oito mil guerreiros (recuperados estão cerca de mil), este exército foi montado para guardar o túmulo do Imperador Qin Shi Huang, há mais de dois mil anos. Fossos rectangulares abrigam estes guerreiros de 1,80m, todos com feições diferenciadas uns dos outros. Acompanhados de cavalos e carruagens, assumem posições de combate e de estratégia militar e as suas vestes representam a sua função e patente no exército. As fortes cores que adornavam as vestes, também representativas da região de cada um, desvaneceram-se com a exposição ao ar, conferindo-lhes agora um tom monocromático de retrato a sépia. Afinal, tal exército era para acompanhar o imperador na sua passagem para o além e não para olhares terrenos. Como forma de castigo pela curiosidade humana, os visitantes são “forçados” a suportar um calor imenso e sufocante nos hangares que agora abrigam os soldados, desafiando-nos a uma resiliência igual à sua.
EM DIRECÇÃO À “ILUMINAÇÃO”
A nossa capacidade de resistência foi verdadeiramente colocada à prova quando decidimos subir ao monte Hua Shan, um dos cinco montes mais sagrados da religião taoista. Um caminho penoso conduz à “iluminação da alma”, independentemente do credo de cada um. Na verdade, ao calor e humidade extremas, alia-se um percurso de traçado muito difícil. Os litros de água consumidos escoam-se pelos corpos encharcados de suor, desagradavelmente pegajosos. A caminhada é dura, muito dura! Recusamos o teleférico que nos pouparia às subidas mais difíceis e agarramo-nos tenazmente às cordas e correntes, trepando as íngremes encostas. Instala-se em nós a vontade suprema de assim vencer a montanha, de chegar a um dos cumes. Por entre subidas e descidas, riachos cantantes que se precipitam vertiginosamente, a montanha vai revelando no seu acidentado percurso, pequenos templos de oração que nos convidam… ao descanso! As montanhas pontiagudas são um verdadeiro panorama de beleza que nos tomam 6h de subida. Finalmente atingimos o cume, pejado de turistas que não dispensaram o teleférico. Não, não nos iludamos, eles foram mais espertos! Já no cume, fazemos ainda pequenas incursões que nos levam a um local com melhor vista ou a um caminho aliciante (perigoso quanto baste) no limite da montanha: a espinha do dragão. A descer todos os santos ajudam, nem que sejam taoistas, e agora demoramos “apenas” 2h até ao local onde tínhamos deixado as mochilas. Não havia tempo a perder, nem descanso a dar ao corpo. Daqui para a estação, da estação para uma nova cidade, Luoyang, num “curto” percurso a 3h de distância, naquela que seria palco de duas caricatas situações desta viagem.
SEM HOTEL MAS COM CABEÇAS DE GALINHA
Chegados já de noite e extenuados, partimos à procura de hotel. Em nenhum dia, como o de hoje, nos apetece tanto um local limpo e confortável. Somos recusados no primeiro hotel! É de referir que a China tem muito turismo… chinês, e estão pouco (nada) preparados para o turismo estrangeiro. É extremamente difícil fazer turismo independente na China, fazer-nos compreender. Só uma grande dose de encaixe, boa disposição e um bom livro-guia com algumas palavras-chave escritas em chinês, permitem ir progredindo na viagem. Continuam relutantes na aprendizagem de novas formas de comunicação (mesmo nos grandes hotéis de cariz internacional, como o Íbis, não havia uma só alma que “arranhasse” inglês) assim como em novas formas encarar o turismo. Enfim, optam por dizer que não têm quartos para evitar o trabalho de lidar com o temível estrangeiro. Assim foi, e só tivemos sorte no segundo, moderno e limpo hotel – há males que vêm por bem (o indispensável optimismo)! Também com optimismo e boa disposição (se bem que com o estômago revolvido) encaramos a nossa gafe num restaurante desta cidade: após um (outro) longo dia, em que as correrias nos deixam pouco tempo para comer, ou simplesmente porque ainda não se tinha apresentado à nossa frente um “restaurante” sedutor, entramos num estabelecimento com menu de imagens (já nem tentávamos que tivessem em inglês). Um prato apetitoso e suculento resplandecia numa bela fotografia, fazendo-nos salivar de fome. No meio de muitos gestos e sons, conseguimos perceber que era galinha. Boa, venha! E assim vieram… cerca de vinte revoltantes cabeças de galinha, ainda de bicos e cristas reluzentes… Perante gáudio geral, pois todo o restaurante estava com os olhos nos raros turistas, desmancharam-se a rir perante a nossa educada repulsa a tão considerado prato!
COLECÇÃO DA UNESCO
Como se tratasse de procura desenfreada de coleccionar locais de Património da Humanidade, o dia seguinte conduz-nos às cavernas de Longmen e ao Templo de Shaolin. A este último, foi-lhe atribuído o título pelos dias em que o visitámos, tornando a China no terceiro país com mais locais listados pela UNESCO, atrás da Itália e da Espanha. As cavernas de Longmen situam-se nas encostas dos montes das margens do rio Yi, um afluente do grande rio amarelo. Não era pois de admirar as notícias de que o local estava interdito devido a inundações. De facto, o local esteve fechado nos dois dias anteriores à nossa visita devido à subida das águas e não tínhamos a certeza se já estaria reaberto. Apostámos na sorte, e bem. O local é fabuloso: ao longo dos anos (desde 492 A.D.), 1350 cavernas, 750 nichos e 40 pagodes contendo 110.000 estátuas, foram esculpidas directamente nas encostas calcárias ao longo de 1km. Encomendadas por imperadores ou famílias abastadas, as imagens, essencialmente de Buda, procuravam trazer a boa sorte a quem as comissionava. Vagueamos pela caverna dos 10.000 Budas ou pela caverna da Flor de Lótus, apreciando o pequeno Buda de 2cm ou o grande Buda de 17m e fascinamo-nos, uma vez mais, com o que deparamos. Certos de que continuaremos num ambiente de paz, introspectivo, vamos para Shaolin, berço do Kung fu. Esta arte marcial tem como base a reflexão profunda, a abstracção que conduz a grandes feitos. Esperávamos encontrar a figura legendária do mestre de longas barbas brancas, alheado de tudo enquanto meditava sob a sombra das frondosas árvores. As árvores estão lá, assim como o templo original… o espírito que o originou… há muito desapareceu! O templo original de Shaolin, construído em 495 A.D., foi o local para onde o monge indiano Bodhidarma viveu, dando-lhe o cunho que o viria a caracterizar. O Kung fu foi originalmente desenvolvido no templo de Shaolin como uma forma de ginástica, para contrabalançar a imobilidade da meditação. Os monges estudavam os movimentos dos animais, copiavam-nos, coordenando esses movimentos com rotinas respiratórias meditativas. Como o templo era isolado, à mercê de bandidos, os monges rapidamente tornaram os seus exercícios numa forma de auto-defesa. Esta prática requer, ainda hoje, longos, rigorosos e disciplinados anos de exercício. A par do templo original, proliferam na zona escolas enormes de aspecto soviético, onde rapazes desde tenra idade treinam arduamente. O seu objectivo não é tornarem-se monges, mas sim, num desejo bem mais terreno, tornarem-se estrelas de cinema. Não obstante a rendição absoluta ao aspecto comercial, ao afastamento supremo dos princípios que o originaram, este local faz parte de um imaginário e gostamos de ver as demonstrações e os treinos que vão decorrendo um pouco por toda a parte, já no “fresco” da tarde.
AUTOCARRO OU COMBOIO?
Mais uma noite em Luoyang para mais um dia de penosas viagens, com Pingyao como destino. Os percursos “curtos” são feitos de comboio ou de autocarro. Fica-nos a dúvida do que será mais penoso: os apinhados comboios sem sítio para sentar e com um batalhão de gente a calcorrear os corredores numa azafamada preparação de massas instantâneas, ou os autocarros onde é «impossível escapar à praga do vídeo (geralmente filmes barulhentos de Kung fu) como bónus do bilhete» (Gonçalo Cadilhe). Somos, desta vez, largamente compensados com uma pequena cidade protegida pelas suas muralhas com um perímetro de 1,5km. Pingyao atingiu o seu zénite como centro bancário na dinastia Ming, apresentando lindas residências e luxuosas mansões de elegante arquitectura Qing. Protegidas dos ladrões, pelas mesmas paredes que agora as protegem da tentacular e desordenada urbe, as ruas estreitas formam um apelativo labirinto. As casas bem recuperadas mantêm a sua arquitectura original e existem regras rígidas na exploração turística: nada de neons, grandes placares ou até mesmo carros durante o dia. De bicicleta partimos à descoberta da cidade “perdendo-nos” por ruelas que escondem os sítios que queremos visitar. Um bilhete tudo-incluído, permite-nos visitar grande parte dos templos, casas de comércio antigas, bancos, torres, muralha. Ficamos por aqui dois merecidos dias! Desta fabulosa cidade partimos para outra (tão desagradável que até o relato merece ser omitido), Taiyuan, cidade cujo o único interesse era o aeroporto que nos levaria de regresso a Pequim.
HARMONIA CELESTIAL
Terminamos a nossa viagem como a começámos: no coração da China, Pequim ou Beijing se preferirem. Agora, “conhecedores” da cidade, arriscamo-nos mais, tornamo-nos mais confiantes e dispensamos o táxi nos nossos percursos. Percorremos a cidade de ponta a ponta, utilizando a eficientíssima rede de metro. Vamos a todo o lado, até esgotarmos todo o tempo que nos resta. O transcendente Templo do Céu foi concebido como o principal ponto de encontro entre a Terra e o Céu num simbolismo expresso em cada pormenor. O intermediário entre estes dois mundos era naturalmente o filho do céu, o imperador, que era protagonista de intrincadas e faustosas cerimónias. A sua construção terminou em 1420 e encontra a sua expressão máxima no “Templo das Preces para as Boas Colheitas”. Feito inteiramente de madeira, sem um único prego, a estrutura circular ergue-se num terraço de mármore com três patamares, doze pilares exteriores suportam a estrutura de cores estonteantes e culmina num telhado triplo de azulejos azuis. A respiração suspende-se perante esta expressão máxima de perfeição, esta harmonia celestial. Um sentimento transcendente, avassalador, talvez espiritual, apodera-se de nós e não há outra palavra para o descrever: Divino!
Visitamos ainda o antigo Palácio de Verão, Yiheyuan, num aprazível parque nas margens de um grande lago. Palco de histórias bizarras, algumas macabras, reflecte a extravagância e os humores dos soberanos, nomeadamente da imperatriz Dowager Cixi, a Imperatriz Orquídea. Também magnífico, utilizando outros parâmetros, é o estádio “ninho de pássaros”, o estádio dos jogos olímpicos de 2008 e… esgotou-se o tempo!
Ignoramos propositadamente as dificuldades sentidas, a ausência das prometidas minorias e a transição pouco simpática de uma cultura ancestral para uma cultura de feio capitalismo. Somos condescendentes com o choque cultural. Afinal viajar é ir ao encontro do que é diferente, do exotismo. Encontrámos paisagens naturais lindíssimas, lugares fabulosos, pertencentes ou não à lista da UNESCO. Encontrámos sítios que só por si, isolados, valiam a pena esta viagem, encontrámos um ADMIRÁVEL DESTINO!
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