ADMIRÁVEIS DESTINOS
Enclausurado pelos picos dos Himalaias, um misterioso reino budista habita desde há muito o imaginário do mundo ocidental, estendendo um braço de fascínio que também nos seduziu. Destino há muito ambicionado e sonhado, finalmente – O TIBETE!
TIBETE, O TECTO DO MUNDO
O Tibete, considerado o tecto do mundo devido às suas altas montanhas, esteve fechado para o mundo durante muitos séculos. Sendo mesmo proibida a visita de estrangeiros, desde logo constituiu um apelo muito forte para o mundo ocidental. A ambição de atingir a cidade sagrada de Lassa, capital do Tibete levou alguns intrépidos aventureiros a arriscarem as suas vidas, de modo a entrarem no fascinante mundo de rituais budistas. Era então, e ainda é, apesar de todas as “comodidades” do mundo turístico, uma dura prova de esforço físico e psicológico.
Um pouco de História-política
Na década de 50 os chineses invadiram o Tibete, alegando estarem a “libertar” o país, levando a cabo a infame “Revolução Cultural”. Destruindo 90% de monumentos históricos e religiosos, pilharam as suas relíquias e chacinaram a sua população indefesa, maioritariamente os pacíficos monges que procuravam defender os seus mosteiros. Estima-se que 1,2 milhões de tibetanos tenham morrido nestes confrontos, não contando com as mortes por fome que vieram depois, devido à imposição dos chineses que a população deveria cultivar arroz (o qual não se dava a tão grandes altitudes) e não a usual cevada. Conduziram o seu líder espiritual e político – o Dalai Lama - ao exílio, onde ainda hoje permanece. A tomada comunista pela China abriu, talvez, o capítulo mais triste da história tibetana.
Poderia-se dizer que tudo isto pertencia ao passado, não fosse o facto de se respirar esta ocupação em todos os momentos: na atitude arrogante e autoritária das autoridades (sempre chinesas) que “ladram” aos encolhidos tibetanos; no controle que fazem de quem quer seguir a fé, reduzindo o número de monges permitidos para cada mosteiro; condicionando, até os turistas, não se podendo falar livremente; apelando a que as pessoas abandonem as suas manifestações pró-Tibete!
Um erro consciente
Apesar de todos os mapas afirmarem que o Tibete é uma região da China, recusamo-nos terminantemente a aceitar essa perspectiva. Assim, consciente e intencionalmente cometemos o “erro” de apelidar o Tibete de país.
Iniciamos a nossa viagem por este mítico país, atravessando a fronteira entre o Nepal e o Tibete. É aqui, e apenas aqui, que o Tibete apresenta a sua mais baixa altitude (2.500m), presenteando-nos com uma paisagem luxuriante nas enrugadas montanhas, polvilhadas de imponentes cascatas. Num único dia subimos de Zhangmu, cidade fronteiriça, até ao acampamento base do Everest (5.000m), o que viria a revelar-se um tremendo erro.
Gargantas do Inferno
Atravessamos as chamadas “gargantas do inferno” que mais parecem um conto celestial, com a sua estrada serpenteante rasgando as verdes montanhas, até encontrarmos o desértico planalto tibetano onde, não fosse o tempo nebuloso e rabugento, poderíamos avistar as montanhas mais altas do mundo, de neves eternas. Passamos por pequenas aldeias que, de tão isoladas, são habitadas pelo autêntico povo tibetano que, ocasionalmente vêm turistas por estes difíceis caminhos. Saídos de suas casas, acorrem freneticamente à nossa passagem, ansiosos por algo que venha do mundo exterior. Não só crianças como adultos, pedem insistentemente, nunca se dando por satisfeitos. Assoberba-nos um sentimento de impotência face às dificuldades com que esta gente vive e ao valor que dão a coisas que tomamos por supérfluas. Esta mendicidade toma nas cidades proporções desmedidas – todo o habitante tibetano é um potencial pedinte, fazendo isto parte da sua cultura, da sua maneira de viver.
A doença da altitude
Após 300Km pelas, benevolentemente chamadas estradas e 9 longas horas de viagem, chegamos finalmente a Rongbuk na base do Everest! Imediatamente o gigante começa a cobrar o seu tributo aos imprevidentes que não tomaram o tempo devido para a aclimatação ao longo de vários dias. A doença da altitude, mais uma vez ataca impiedosamente, pondo em risco a incursão do dia seguinte para ver mais de perto o local onde a terra toca o céu, o monte Qomolongma (Everest).
8.848 - “O” Everest
Cessa aqui, todo o acesso feito por veículos motorizados. Um percurso de 7Km, apresenta-se como hercúleo, apesar de se oferecer ao turista a possibilidade de atingir o campo base do Everest numa carroça puxada por uma mula – mas isso era batota! Empolgados pela paisagem fugidia do Everest, espreitando entre as nuvens, abandonamos o mosteiro de Rongbuk já pululante de actividade e, lentamente, começamos a nossa ascensão de 300m. Penosamente vamos respirando e andando, não tirando os olhos do Everest, conscientes de que será uma vez na vida! O ar rarefeito atrasa os nossos passos, acelera o nosso coração e provoca uma dor de cabeça e náusea constantes. Porém, a força de vontade mantém-nos a andar, à semelhança de tantos outros que, silenciosamente (há que poupar forças), partilham o mesmo caminho. Atingimos o ponto onde os amadores como nós param, para dar lugar às ambições dos profissionais. Quedamo-nos a olhar para esta montanha que já reclamou tantas vidas e enfeitiçou outros tantos montanhistas, incluindo o nosso João Garcia. Agora sim, partilhamos a euforia que nos assalta perante a face norte da montanha mais alta do mundo. Não é propriamente a sua beleza que é indescritível, mas tudo o que representa estar ali!
O preso político mais novo do mundo
Retomamos caminho no dia seguinte, para encontrarmos outros vales verdejantes, outros cólos enfeitados com bandeiras de oração, outros resilientes mosteiros, aldeias perdidas na paisagem agreste, população sedenta de companhia e de imagens do próprio país, para chegarmos à segunda maior cidade do Tibete – Shigatse.
Apesar da tarde já ir avançada, de cansados e desejosos de uma casa-de-banho após três dias, decidimos adiar os prazeres do conforto para aproveitarmos o resto da luz do dia para umas explorações por conta própria. Optámos pela Kora (caminho sagrado que se realiza no sentido dos ponteiros do relógio) à volta do mosteiro de Tashilumpo, um dos mais importantes do Tibete. Parecendo consciente da sua glória e importância, este mosteiro revela-se para nós pululante de actividade e rico em manifestações de rituais budistas.
Apresenta-se aos nossos olhos uma multidão de peregrinos, murmurando em tom de lamentação a mantra om mani padme hum, acompanhados das suas rodas de oração e de uma espécie de rosário, semelhante ao dos católicos. Sempre no sentido dos ponteiros do relógio acompanhamos esta “procissão”, algo agoniados pelo cheiro rançoso das oferendas de manteiga entranhado nas diversas capelas. Curiosamente, num país em que o seu povo passa tantas dificuldades, as oferendas em dinheiro amontoam-se em frente às imagens, espalha-se pelo chão, sem que haja uma alma que o retire. Também os monges estão fervilhantes de actividade e assistimos às orações matinais. Em simultâneo com as rezas sincopadas é servido o lendário chá de manteiga de iaque para enriquecer a tsampa (farinha de cevada torrada e adocicada) nas malgas de madeira. O chá de manteiga de iaque e a tsampa são a base da alimentação tibetana, constituindo uma dieta pobre e pouco saudável, contribuindo para a baixa esperança de vida (cerca de 45 anos). Reza-se ao mesmo tempo que se come, mas logo a nossa atenção é desviada para outro local onde decorre uma cerimónia de bênção de objectos, com os monges envergando os trajes de cerimónia deste mosteiro. Assim que termina o “espectáculo”, começamos a ouvir um marulhar de vozes animadas e diligentemente dirigimo-nos para o local em questão. Está na hora do debate, em que os monges se confrontam amigavelmente. Estes debates são plenos de adrenalina e de rituais: um monge está de pé coloca a pergunta, batendo energicamente uma palma em direcção ao opositor, exigindo uma resposta fundamentada. Se a resposta for do seu agrado torna a bater suavemente uma palma se, pelo contrário, achar que está errado bate com as costas da mão gerando-se uma polémica empolgante. Para o observador, não é necessário perceber uma palavra do que dizem, pois estes monges concentrados apenas no seu opositor, são ricos em expressões faciais e corporais, encantando-nos incondicionalmente. Os debates são de tal modo intensos e envolventes que assistimos até ao último monge se retirar bem disposto, tal como nós, de sorriso na cara.
Saímos com pena deste mosteiro, pois encontrámos aqui grande parte do que ambicionávamos ver. Contudo o nosso guia (no Tibete é proibido pelas autoridades chinesas fazer turismo independente) tinha-nos preparado uma surpresa: levar-nos a uma casa típica tibetana, nada menos do que a da própria irmã! Observámos assim, sem subterfúgios nem embelezamentos para turista ver, o interior de uma casa tibetana, os utensílios típicos e todas as tarefas impostas por uma vida dura. Confecção da própria manteiga, da cerveja, cultivo e tratamento da cevada, o cuidar dos animais. Apesar de algo constrangidos por invadirmos um espaço privado, arregalámos os olhos perante a oportunidade que se nos oferecia. Declinámos uma chávena de chá de manteiga de iaque, sabor algo repulsivo, a favor de um pouco de cerveja caseira, esta não tão desagradável como o chá. Apesar de não poder comunicar, vai sorrindo, observando também ela todos os nossos mínimos movimentos, enquanto continua mecanicamente nas suas tarefas – não pode haver um momento de relaxe! A sua hospitalidade tem tradição milenar e é reflexo do povo tibetano.
A rota dos mosteiros
Visitámos outros mosteiros, onde as cerimónias se repetem, mas sempre novas aos nossos olhos. Em Gyantse (3.950m) subimos à stupa Kumbum, das mil imagens, onde os olhos do Buda observam os nossos movimentos, vemos Palkor Code e “escalamos” ofegantes a fortaleza medieval de Dzong, palco sangrento de batalhas não muito distantes no tempo. Já em Lassa visitamos os importantes mosteiros de Drepung e de Sera, onde assistimos a mais uma empolgante sessão de debate. Assistimos às cerimónias no mais sagrado mosteiro do Tibete, o
Passaram assim três dias em Lassa, tempo necessário para obter autorização para visitar o mais emblemático edifício do Tibete – “O Potala”. Residência oficial do Dalai Lama, era outrora um fervilhante núcleo de actividade, reunindo nos seus palácios branco e vermelho e inúmeras capelas e residências, o poder político, administrativo e religioso do Tibete. Atingido no coração, queda-se agora silencioso, despido das sumptuosas riquezas descritas pelos tais aventureiros que ali conseguiram penetrar. Apesar de triste no seu interior, não se apagou em nós o arrebatamento que causa olhar para tão magnífico, grandioso e imponente edifício, mais uma vez pelo seu simbolismo e não só pela beleza arquitectónica. Esta é uma das imagens que ficará guardada no nosso coração!
Trekking cancelado
Assim, optámos por mais um percurso de jipe, abraçando o positivo da mudança e que nos levou ao cénico mosteiro de Ganden, após uma subida vertiginosa; a Drigung, o palco mais sagrado para as cerimónias fúnebres, o Sky Boreal, em que os defuntos são esquartejados e dados de comer aos abutres. Algo arrepiante para nós ocidentais, esta cerimónia é a maior homenagem que se pode oferecer aos mortos tibetanos; o convento de Djore Ling, aninhado num vale verdejante com piscinas de águas termais, no qual aproveitamos para tomar um merecido e necessitado banho.
O lago mais alto do mundo
E o lago Nam-tso! O lago salgado mais alto do mundo (4.718m), rodeado de picos com mais de 7.000 metros, os mesmos que Heinrich Harrer e Peter Aufschnaiter atravessaram (Sete Anos no Tibete). Este magnífico cenário, torna-se irreal e inacreditável de tão belo que é. Pena é que os dropkas, únicos habitantes deste lugar agreste, estejam a trocar a sua vida de pastoreio, pelo lucro mais imediato que o turismo fornece (imensos turistas chineses). E, finalmente, na viagem de regresso a Lassa, um último, longo e difícil desvio para o reverenciado mosteiro de Tsurphu. Extremamente belo no seu enquadramento, este mosteiro, silencioso com a partida do Karmapa, (líder espiritual refugiado na Índia e terceiro na hierarquia do Tibete), encerra a nossa visita ao Tibete, com uma nota de esperança pelo futuro deste país.
Uma triste e fascinante experiência
Para qualquer turista com os olhos abertos, uma visita ao Tibete é, com certeza, memorável e fascinante, uma experiência avassaladora, um turbilhão de sentimentos: tristeza, arrebatamento, revolta, impotência, alegria, paz. Sem dúvida, ADMIRÀVEL.
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