AMIRÁVEIS DESTINOS
Enfim a África, a África Negra! A TANZÂNIA reúne muito do que nós queremos ver em África. Os grandes espaços abertos das savanas, a diversidade e riqueza da vida selvagem, o mergulho num território de espíritos e a ascensão ao lugar dos deuses, no ponto mais alto do continente africano: O Kilimanjaro!
Enfim a África, a África Negra! A TANZÂNIA reúne muito do que nós queremos ver em África. Os grandes espaços abertos das savanas, a diversidade e riqueza da vida selvagem, o mergulho num território de espíritos e a ascensão ao lugar dos deuses, no ponto mais alto do continente africano: O Kilimanjaro!
Tanzânia tem uma montanha que brilha
Kilima Njaro, o nome significa em suaíli «a montanha que brilha», certamente devido aos reflexos dançantes do seu lindo glaciar. É nesta magnífica e mesmerizante montanha, com 5.895m de altitude que começa a primeira parte da nossa viagem à Tanzânia e aquela que iremos aqui contar. A ascensão ao Kilimanjaro é de tal modo intensa e absorvente que, caberá numa outra história, contar os usos e costumes do país e outras experiências electrizantes. Com dois picos, ambos vulcões extintos – o Mawenzie (5.149) e o Kibo (rebaptizado de Uhuru), o Kilimanjaro encontra neste último o seu pico mais elevado. Este é o nosso objectivo, o ponto mais alto em que, amadores como nós, poderemos alguma vez sonhar estar.
Também sou português
No hotel discutia-se a rota a seguir, o equipamento que cada um tinha e o que faltaria. A balbúrdia era muita, a par da excitação pelo início de uma aventura que poderia estar para lá das possibilidades de cada um. Chegámos ao hotel a tempo de assistir ao fervilhar de uma partida para a ascensão ao Kilimanjaro. A nossa “expedição” sairia no dia seguinte. No meio de tanta confusão descobrimos que, ao falar atabalhoadamente inglês com um turista, este afinal era português, residente na África do Sul. A conversa tornou-se mais fluente e após muitos risos e apertos de mão, desejámos mutuamente boa sorte, uma vez que seria pouco provável encontrarmo-nos novamente: ele iria pela rota “whisky” e nós pela rota “Coca-Cola” (Marangu route). Na verdade só descobrimos que havia duas rotas nesse momento e ficámos desapontados, pois a nossa afigurava-se mais fácil e, se íamos conquistar a montanha, que fosse pelo mais difícil. Nesta altura, a organização das nossas viagens ainda estavam a cargo de outrem e não tínhamos sido informados desse pormenor. O desapontamento durou só até ao momento que o nosso «guia» nos informou que a taxa de sucesso da rota Coca-Cola era de 30% e a da rota whisky de 40%. O período de ascensão nesta última é mais longo e, apesar do trilho ser mais difícil em termos de traçado, revelando maiores obstáculos, o corpo tem mais tempo para se aclimatar e assim suporta melhor o esforço. Enfim, o objectivo e a conquista final seriam os mesmos – Uhuru, o pico do Kilimanjaro!
No dia seguinte, após balbúrdia idêntica, saiu o nosso grupo com uma breve paragem nos “escritórios” para uma recolha de material em falta. Este material, todo ele de marcas conceituadas e originais, são os excedentes que os montanhistas, ou pretensos montanhistas, ofereceram aos seus guias. Num percurso que se apresenta extenuante e muitas vezes desesperante, os montanhistas criam com os seus guias uma relação de dependência e gratidão e assim, no final da jornada, oferecem-lhes o que têm de melhor pois olham para o material inadequado com que os seus guias vencem a montanha uma e outra vez. Os guias agradecem e… correm a alugá-lo aos próximos turista incautos que não trouxeram o equipamento todo! A nós, coube-nos alugar um par de bastões (se fosse necessário partilhávamos), que nos diziam imprescindíveis – e realmente foram!
Rota Coca-Cola
Iniciámos o percurso de 5 dias pela rota Marangu, a uma altitude de 1.970m. Num placar informativo nas “portas do parque” a informação detalhada para cada ponto do percurso, o tempo de duração aproximado da caminhada, a altitude e a vegetação que presenciaríamos. Parecia tudo muito simples e fácil de atingir.
Bem dispostos e sorridentes, iniciámos a caminhada com as mochilas carregadas apenas com o essencial: água, lanches, agasalhos e uma vontade imensa de conquistar. O resto do material/equipamento era transportado por uma equipa de carregadores, exagerada para um grupo de três pessoas, uma vez que o percurso era dotado de facilidades permanentes, como cabanas de dormida, casas-de-banho e refeitórios, ao invés do que tinha acontecido no Peru. Afigurava-se aqui também a possibilidade de negócio, com vista a gorjetas chorudas que enchessem o bolso de todos e esvaziassem os nossos.
Um belo passeio pelo campo levou-nos a Mandara Hut a 2.700m de altitude, por uma floresta tropical, onde pudemos apreciar calmamente a vida selvagem, patinhar nos seus caminhos húmidos e enlameados e sentir as ferroadas dos seus mosquitos. Os abrigos, cabanas de madeira de variados tamanhos, revelaram-se surpreendentemente bons e até confortáveis, com cubículos com colchões próprios para os saco-cama. Na refeição (se nos abstraíssemos dos bastidores caóticos e pouco limpos da cozinha, a comida era óptima), partilhávamos com outros montanhistas uma cabana maior que servia de refeitório e de ponto de encontro entre os que sobem e os que já vêm na descida. Trocávamos ideias, opiniões e sobretudo ouvíamos, ávidos, os relatos daqueles que já vinham no caminho descendente, em busca de pistas que nos ajudassem a superar a prova. Mas, como em tudo, a teoria só é realmente compreendida quando posta em prática.
Ascensão a 45º
Passámos para uma vegetação de charneca de urze, com grandes snessias (espécie de cacto gigantesco), quando nos dirigimos para Horombo, a 3.720m de altitude. Continuávamos a partilhar informações à hora da refeição do final do dia. Todos os relatos de falta de ar, dores de cabeça, náuseas, vómitos eram por nós conhecidas do Peru, mas aqui iríamos subir a uma altitude superior em 2.500m Ouvíamos os que não tinham conseguido – desoladíssimos; e os que tinham: extenuados, mas com um brilho especial no sorriso e no olhar! Esperávamos pertencer a este último grupo.
Um novo dia, uma nova caminhada por uma paisagem cada vez mais estéril, em deserto alpino que nos levou até Kibo Hut, a 4750m de altitude. Apraz-nos observar o Mawenzie e o Kilimanjaro mas, apesar do percurso de inclinação suave, os efeitos do ar rarefeito começam-se a sentir, as conversas esmoreceram e os bastões, até ali tratados com desprezo, começam a revelar-se úteis. Kibo seria o último bastião até realmente a verdadeira e dura prova começar. Após um breve descanso partimos à meia-noite para o nosso objectivo final, confiantes de que alcançaríamos a meta. Tínhamos no entanto, prometido um ao outro, caso um não conseguisse o outro continuaria. Não haveria outra oportunidade igual! Partir à meia-noite significava enfrentar o frio intenso e a montanha na sua forma mais hostil, num lugar de abismos e de espantos, mas também nos permitiria assistir a um lindo nascer do sol e evitar o encobrimento total que caracteriza o cume pela tarde. O luar procurou ajudar, brilhando nas pedras soltas e rolantes da encosta – a vertente suave do gigante tinha-se transformado numa abrupta e íngreme encosta final, num desnível de quase 1000m até Gilmans point.
Poli, poli
Uma ascensão muito dura e penosa que nos leva a pensar várias vezes «porque estou a fazer isto?». A água que tínhamos colocado a ferver numa garrafa e depois dentro de um saco térmico congelou, assim como os nossos dedos e nariz, apesar dos reforços de roupa (dois pares de calças, dois pares de luvas, várias camisolas, gorros e Kispos). Um de nós suporta bem a altitude, como disse um guia no Peru – uma encarnação Inca, e foi a sua maior dor de cabeça o companheiro que, várias vezes vomita e várias vezes perde os sentidos, mas não desiste! Passámos o limiar do divertimento e agora encontramo-nos em sofrimento, mas algo nos impele a continuar, um pé a seguir ao outro, passo a passo, penosamente, incentivados pelo poli, poli (devagar, devagarinho) dos nossos guias. Os nossos pés resvalam cada vez mais, trôpegos, bêbados, cansados, conscientes que sem a ajuda dos inestimáveis bastões, o melhor amigo da altura, não era possível vencer. Alcançámos Gilmans point (5.685m) e só faltavam 200m de ascensão num caminho menos exigente. Mas longo, tão longo, interminável e desesperadamente agoniante e, o Sol quase a nascer! Um pé, depois outro, olhar para o chão, não olhar para o final, avançar a um ritmo penoso, foi a que se resumiu a nossa caminhada final.
Um mar de nuvens
Conseguimos, atingimos finalmente o cume! A 5.895m de altitude os olhos humedecem-se de dor, emoção, de cansaço e tantos outros sentimentos mal delineados. Banhado pela luz despontante de um nascer de sol soberbo, estendia-se a nossos pés o Kili com as suas muralhas de gelo branco e azul, a sua poderosa solidão sob um céu que se apresentava agora raiado de sangue. Fixámos a tabuleta que confirmava o nosso feito e congratulámo-nos efusivamente, enquanto o nosso corpo ia descongelando aos primeiros raios da manhã. O Mawenzie (5.270m), muito abaixo de nós, perdia-se, praticamente oculto sob um vasto mar de nuvens e, muito longe do lado norte, julgávamos descortinar num amontoado de cúmulos o seu irmão gigante, o Monte Quénia.
O esplendor esmorece
Desde a primeira ascensão do Kilimanjaro, em 1889, a neve que cobria o fundo da cratera não deixou de derreter e as línguas glaciárias de recuar, estando agora apenas a 20% do seu esplendor, mas mesmo assim esmagador nas suas esculturas glaciais. Desatámos então numa tentativa desenfreada de preservar este momento, criar uma pasta especial no computador da nossa alma e documentá-lo em fotografias trémulas de emoção, apaixonadas.
Quis o destino que encontrássemos aqui o mesmo português, residente na África do Sul, com quem tínhamos conversado, seguramente há um século atrás, que nos pediu de imediato a nossa bandeira de Portugal emprestada. Companheira inseparável e orgulhosa de todas as nossas viagens, que bem hasteada nas costas da mochila, mereceu nesta viagem alguns comentários como: «Ali vão os portugueses. Eles conseguiram!». Resistentes à descida, só podíamos estar no cume 30m e já lá estávamos há uma hora, lançamos pois um último olhar húmido a este local que, certamente não contará novamente com a nossa presença. Uma vez na vida e antes que acabe.
No tecto de África
Os músculos cansados, as queimaduras faciais a manifestarem-se num calor imenso a sair por todos os poros e ainda a degradação extrema das condições de higiene, revelaram-se para o corpo ressentido como o limite da resistência física e psicológica, mas ainda faltava descer! A descida, mais leve pelo sentimento de objectivo alcançado, mas nem por isso mais fácil, forçou a uma troca de mão dos bastões – a resistência tinha mudado de dono! Este último dia caracterizou-se por um início de ascensão à meia-noite, após um descanso de breves horas. Em 7h atingimos o cume, permanência de 1h no topo, descida em 4h30m, novo descanso de 3h e… nova descida de 4h. Feitas as contas, desceríamos em dois dias o que tínhamos levado três dias e uma noite a alcançar!
Enfrentado e superado o desafio, era a hora da recompensa com uma bela Coca-Cola e um diploma que certifica que estivemos no tecto de África!
Algo de admirável
O que nos levou a expor desta maneira e propositadamente ao sofrimento? Não sabemos. Só sabemos que compreendemos um pouco melhor os alpinistas quando dizem que a «montanha está ali, chama por nós». Não temos pretensões de voos mais altos, mas fica-nos a satisfação de ter conseguido algo que apelidamos de mágico, de triunfante, de ADMIRÁVEL!
O que nos levou a expor desta maneira e propositadamente ao sofrimento? Não sabemos. Só sabemos que compreendemos um pouco melhor os alpinistas quando dizem que a «montanha está ali, chama por nós». Não temos pretensões de voos mais altos, mas fica-nos a satisfação de ter conseguido algo que apelidamos de mágico, de triunfante, de ADMIRÁVEL!
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